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É preciso lutar, mas conservar a saúde mental é indispensável!

Daniela Bemfica

Daniela Bemfica

Engenheira Civil, mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e doutoranda em Planejamento do Território – ex-diretora-geral do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) - Associada Astec

Fonte: Freepik

Há poucas semanas, fui surpreendida pelo pedido de um amigo: compartilhar minha história de vida com meus ex-colegas da ASTEC. Relutei. Escrever para a Revista da ASTEC sempre foi uma experiência gratificante. Mas, das outras vezes em que fiz isso, descrevi projetos interessantes desenvolvidos por nós, engenheiros do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP). Agora, deveria contar experiências pessoais – algo pouco usual, tanto para mim quanto para a revista. Mas meu amigo teve um argumento forte: “Os servidores têm passado por muita pressão psicológica nos últimos tempos. Talvez uma história como a tua possa levantar a moral de alguns”. Fui convencida...

Minha trajetória no Município começou em 1999. Em 2016 eu era Diretora de Obras e Projetos do DEP quando veio à tona um esquema de corrupção envolvendo contratos da Divisão de Conservação do Departamento (segundo as investigações, encabeçado por cargos em comissão (CCs). Nós, servidores, fomos chamados a tomar a frente na apuração dos fatos e na administração do que restava do DEP. O momento era complicado, com serviços atrasados, contratos suspeitos encerrados, restrições orçamentárias e descrédito frente à sociedade. Fizemos o máximo que podíamos com os escassos recursos disponíveis e terminamos 2016 em uma situação estável, mas ainda crítica.

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Com a mudança de governo, fui convidada a assumir a Direção Geral do DEP. Hesitei em aceitar, tanto pela minha incompatibilidade ideológica com a nova administração, quanto pela indicação de que pretendiam extinguir o Departamento, de forma precipitada e não planejada. Porém, apoiada por meus colegas, aceitei o cargo – se não o fizesse, teríamos novamente um político, sem quaisquer conhecimentos sobre gestão de águas urbanas, indicado para o cargo.

Hoje vejo que essa foi, talvez, a pior decisão da minha vida. Foram meses de grande estresse, que afetaram minha saúde mental. Enquanto restrições orçamentárias impediam a publicação de processos licitatórios importantes e o pagamento de contratos essenciais foi cortado, a cobrança por entregar serviços eficientes à população só aumentava. Pouco tempo depois, foi encaminhado à Câmara Municipal o Projeto de Lei Complementar do Executivo (PLCE) Nº 005/2017 que, aprovado em 12/07/2017, deu origem à Lei Complementar nº 817, de 30 de Agosto de 2017,  que extinguiria o departamento. O projeto original, alterado pela Mensagem Retificativa ao PLCE 005/2017 previu, entre outras medidas, a extinção do DEP. Passamos o dia da votação conversando com vereadores e vice-prefeito, tentando reverter a situação. Nosso esforço foi em vão. Em 12 de julho de 2017, a extinção do DEP foi aprovada, encerrando uma história de 44 anos. O departamento, modelo de gestão das águas pluviais urbanas no Brasil, após ser alvo de  sucateamento por anos, foi sumariamente esquartejado, tendo suas atribuições repartidas entre secretarias sem estrutura, sem conhecimento técnico e sem coesão. Daquele dia, guardo a tristeza pelo acontecido, mas também a sensação de união do grupo de amigos-colegas que lutou até o fim, além do apoio que recebemos de colegas de outras secretarias e de outros atores do setor de saneamento do Brasil.

Foi nesse momento que percebi que precisava me afastar, curar as feridas e aguardar a “poeira assentar”. Solicitei então uma licença não-remunerada para estudo, deixei para trás uma vida estabelecida e, em janeiro de 2018, comecei um doutorado na Universidade do Porto, com bolsa da Fundação de Ciência e Tecnologia de Portugal. Adaptação difícil, principalmente para os filhos. Saudades imensas da família e amigos no Brasil. Na universidade, disciplinas novas, que eu nunca havia estudado. No dia-a-dia, um país tão lindo quanto diferente (e nem sempre acolhedor). Após 2 anos intensos, em fevereiro de 2020 completei minha qualificação. Outros 2 anos de tese e voltaria a Porto Alegre, já com o título de doutora.

Mas a vida tinha outros planos. Em março de 2020, Portugal entrou em lockdown total. Meses sem sair de casa. Como muitos, comecei a repensar minhas escolhas. Eu queria mesmo voltar ao Brasil? Queria ver meus filhos, agora adolescentes, virando adultos no atual contexto do país? Queria continuar sendo servidora municipal, dependendo de decisões de gestores políticos? Não, não queria.

Então resolvi explorar alternativas. Surpreendentemente, um dos primeiros anúncios de emprego que vi  pedia um profissional com mais de 10 anos de experiência em empresas de saneamento na América Latina. Tive a única entrevista de emprego de minha vida, e, desde o final de 2020, sou Diretora de Programas Estratégicos da International Water Association (IWA), a maior associação profissional do mundo no setor de água e saneamento. Sediada em Londres, a IWA organiza bianualmente o Congresso Mundial da Água, publica 15 revistas científicas (dentre as quais a Water Research, o mais respeitado journal na área de recursos hídricos), e participa de projetos de disseminação de conhecimento em conjunto com instituições internacionais como Comissão Europeia, Banco Mundial e Fundação Bill e Melinda Gates.

E assim chego a março de 2022, quando precisei optar por voltar ao Brasil e manter meu emprego seguro no Município, mas continuar acumulando as frustrações dos últimos anos, ou perder minha estabilidade e permanecer aqui, em um emprego incrível, mas sem garantias. Foi uma decisão extremamente difícil, mas optei por correr o risco. Se segui o caminho certo? Só o tempo dirá…

Aceitei o desafio de redigir esse texto por dois motivos principais. O primeiro deles, já mencionado, é tentar motivar quem está passando por situações complicadas, similares às que passamos em 2017. É importante permanecer na luta? Claro! Mas, se atingirmos nosso limite e a luta estiver afetando nossa saúde mental, sempre há outras opções. E não há problemas em tentar mudar. É preciso lutar, mas conservar a saúde mental é indispensável! Já o segundo motivo só entendi agora, ao escrever esse texto. Contar minha história aqui foi uma catarse, um fechamento de ciclo, uma despedida. Obrigada, ASTEC, por me proporcionar isso. Obrigada, colegas do DEP, por 18 anos de um convívio intenso e enriquecedor. E um último obrigada, muito especial, aos meus mentores e amigos, Magda, Augusto e Carlos, e aos meus colegas de risos e brigas, Stanlei e Ana. Vocês estarão comigo sempre!

Referências

Porto Alegre. Lei complementar nº 810, de 4 de janeiro de 2017. Dispõe sobre a Administração Pública Municipal, cria e extingue secretarias municipais, estabelece suas finalidades e competências e revoga legislação sobre o tema. Porto Alegre: Leis Municipais, [2022]. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/rs/p/porto-alegre/lei-complementar/2017/81/810/lei-complementar-n-810-2017-dispoe-sobre-a-administracao-publica-municipal-cria-e-extingue-secretarias-municipais-estabelece-suas-finalidades-e-competencias-e-revoga-legislacao-sobre-o-tema . Acesso em: 6 jul. 2022.

 

PORTO ALEGRE.  Lei Complementar Nº 817, de 30 de agosto de 2017. Dispõe sobre a reorganização da Administração Pública Municipal, altera os incs. I e VIII do art. 3º e o caput do inc. I, as als. f do inc. III, a do inc. V e d do inc. IX e o inc. IV do art. 4º e inclui als. e no inc. II, g no inc. III, c no inc. V, e no inc. VI e e no inc. VIII do art. 4º da Lei Complementar nº 810, de 4 de janeiro de 2017; altera o inc. III do § 4º do art. 4º da Lei Complementar nº 625, de 3 de julho de 2009, e alterações posteriores; extingue secretarias e órgãos municipais e incorpora suas competências às das secretarias municipais criadas pela Lei Complementar nº 810, de 2017; revoga legislação sobre o tema; e dá outras providências. Porto Alegre: Leis Municipais, [2022]. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/rs/p/porto-alegre/lei-complementar/2017/81/817/lei-complementar-n-817-2017-dispoe-sobre-a-reorganizacao-da-administracao-publica-municipal-altera-os-incs-i-e-viii-do-art-3-e-o-caput-do-inc-i-as-als-f-do-inc-iii-a-do-inc-v-e-d-do-inc-ix-e-o-inc-iv-do-art-4-e-inclui-als-e-no-inc-ii-g-no-inc-iii-c-no-inc-v-e-no-inc-vi-e-e-no-inc-viii-do-art-4-da-lei-complementar-n-810-de-4-de-janeiro-de-2017-altera-o-inc-iii-do-4-do-art-4-da-lei-complementar-n-625-de-3-de-julho-de-2009-e-alteracoes-posteriores-extingue-secretarias-e-orgaos-municipais-e-incorpora-suas-competencias-as-das-secretarias-municipais-criadas-pela-lei-complementar-n-810-de-2017-revoga-legislacao-sobre-o-tema-e-da-outras-providencias Acesso em: 6 jul. 2022.

 

PORTO ALEGRE (RS).  Projeto de Lei Complementar do Executivo nº005/17.  Dispõe sobre a reorganização da administração pública municipal, extingue secretarias municipais, incorpora as competências das secretarias extintas nas secretarias municipais criadas pela Lei Complementar nº 810, de 4 de janeiro de 2017; transfere e vincula a Controladoria-Geral do Município (Cgm) à Secretaria Municipal da Transparência e Controladoria (Smtc), transfere as divisões de contabilidade-geral e de informações legais e gerenciais da Cgm para a Secretaria Municipal da Fazenda (Smf); cria a Controladoria-Geral do Município; estende à Smtc o exercício e, ou, a lotação dos cargos lotados originariamente em órgãos da Smf, com a respectiva remuneração, gratificações e funções gratificadas nos termos da Lei nº 6.309, de 28 de dezembro de 1988, e legislação posterior; extingue o Departamento de Esgotos Pluviais (Dep) e o Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais (Gades); transforma os Centros Administrativos Regionais (Cars) em Centros de Relações Institucionais Participativos (Crips).  Proc. Nº 01433/17 – Plce nº 005/17. Porto Alegre:  Câmara Municipal de Porto Alegre, [2017]. Disponível em: https://www.camarapoa.rs.gov.br/draco/processos/131722/MRPLCE005_2017_2017_07_12_10_52_44_920.pdf Acesso em: 6 jul.  2022.

Artigos | Revista da Astec v. 22, n. 49,  agosto de 2022.

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