A ditadura que não quer terminar (notas sobre os 60 anos do golpe de 1964)
Fonte: Freepik
Carlos Frederico Guazzelli
Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-14) - Autor convidado.
Introdução
O transcurso, no último 1º de abril, de sessenta anos da instalação da ditadura civil-militar que perdurou por mais de duas décadas no País, enseja reflexão mais do que oportuna sobre este período, especialmente em face dos acontecimentos recentes de nossa história política. Refletir sobre o passado para entender o presente e descortinar os cenários futuros, mais do que a repetição de um truísmo, revela-se neste caso uma verdadeira necessidade, na tarefa de descobrir os sentidos, evidentes ou ocultos, de nossa trajetória presente, como nação e sociedade. Ainda mais quando deste exercício de memória, procedido à luz da razão e da experiência histórica, podem brotar algumas das causas explicativas do momento que vivemos hoje.
Por fim, o apanhado contextualizado dos principais acontecimentos que marcaram a ditadura civil-militar de 1964-1985, e seus desdobramentos nas décadas seguintes, servirá para identificar a presença de seu mais perverso legado – a presença, ainda hoje, de ideologias, instituições e práticas nela gestadas, e que continuam a infelicitar a grande maioria de nosso povo, de modo especial suas camadas mais desfavorecidas.
Os antecedentes do golpe de 64 e os golpes antecedentes e abortados
O golpe de Estado que redundou, no primeiro dia de abril de 1964, na derrubada do governo legítimo de João Goulart, resultou do processo de crescente e agudo conflito político, que marcou praticamente todo o período democrático iniciado no pós-guerra, com o fim do Estado Novo e a promulgação da Constituição de 1946. Desde então, tendo por pano de fundo a “guerra fria”, foi-se criando e ampliando um ambiente de forte radicalização política e ideológica, ao longo dos anos 1950 e início dos anos 1960.
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Constituíram-se então dois campos políticos opostos, e a luta pelo poder entre ambos levou a graves crises no período. Do lado da direita, perfilavam-se as oligarquias rurais e as burguesias industrial, comercial e financeira, com respaldo em parcela dos setores médios, articulada por forte discurso midiático anticomunista. No polo oposto, parte dos segmentos médios aliados aos setores populares – o nascente proletariado urbano e o campesinato – constituíam a base popular dos governos nacionalistas e progressistas de Getúlio Vargas (1950-1954), Juscelino Kubitschek (1955-1960) e João Goulart (1961-1964).
Os líderes civis e militares da facção direitista tentaram sem sucesso derrubar os governantes adversários – o que foi impedido em 1954 pelo suicídio de Vargas; em 1955, pelo contragolpe do Marechal Lott, que garantiu a posse de Juscelino. Além disso, após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, desencadearam “golpe branco” visando impedir a posse do Vice-Presidente, Jango.
De todos estes episódios, tirante o suicídio de Vargas – que adiou por dez anos o triunfo dos golpistas – o mais marcante foi a “Campanha da Legalidade”, como foi chamado o movimento popular criado e liderado a partir do Rio Grande do Sul, pelo então Governador Leonel de Moura Brizola, que conseguiu articular a resistência democrática no resto do País e assim garantir a posse de Goulart na Presidência da República.
A crise política foi superada pelo Congresso por meio da adoção de Emenda Constitucional instituindo o regime parlamentarista. Se isso permitiu, de uma parte, a posse de Jango, a instituição deste “parlamentarismo de ocasião” objetivava claramente esvaziar seu governo, retirando-lhe força para implantar seu programa reformista.
O governo de João Goulart: agudização da disputa política e conspiração golpista
Assim, ele assumiu a Presidência da República com poderes limitados e, depois da gestão de três primeiros-ministros à testa do Executivo Federal, João Goulart buscou e obteve, em 1963, uma estrondosa vitória em plebiscito destinado precipuamente à escolha do regime de governo: a ampla maioria do eleitorado optou pela volta do presidencialismo.
Adotado então novamente este regime, pôde logo o Presidente dedicar-se à implementação das chamadas “reformas de base” – a saber: constitucional, política, agrária e tributária. Nesta empreitada, ele contava com o apoio dos partidos de esquerda – legais e clandestinos – e dos sindicatos e movimentos sociais, além dos contingentes subalternos das Forças Armadas, organizados em suas associações.
A luta aberta entre o governo federal e seus opositores escalou e se expressou, em março de 1964, em duas grandes demonstrações de força. A primeira delas foi o comício realizado diante da Estação da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 13, reunindo cerca de duzentas mil pessoas, para ouvir a forte manifestação do Presidente da República em favor do programa de reformas. E alguns dias depois, em reação, a chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, reunindo aproximadamente cem mil adeptos, em São Paulo, para protestar contra a alegada “ameaça comunista” representada pelo governo janguista.
A partir desse momento, a conspiração contra o governo ocorria às claras, envolvendo não apenas a direita militar, sempre mais discreta, mas principalmente os Governadores dos principais Estados – Rio, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul – com amplo apoio da chamada grande imprensa (com a exceção honrosa do jornal “Última Hora”, criado na década anterior para defender o legado de Getúlio Vargas e o trabalhismo).
Com a recente decretação do fim do sigilo temporário de inúmeros documentos oficiais dos Estados Unidos, tem-se hoje a prova incontroversa de que os conspiradores contaram, não apenas com o suporte político daquele país, como também com seu auxílio material, financeiro e pessoal, na concepção e desenvolvimento do plano de desestabilização do governo de Goulart.
O resultado foi que, malgrado os militares que encabeçavam o projeto golpista planejassem fazê-lo no fim de abril, o voluntarismo de um general – Olímpio Mourão Filho – precipitou o putsch no último dia de março, e graças à falta de resistência militar do governo constituído, a quartelada instalou no dia seguinte os rebeldes no poder, com o incentivo e apoio das classes dominantes e seus aliados.
A ditadura civil-militar (1964-85)
Ao contrário do que sustenta certa versão facciosa e interessada, desmentida pela reconstituição fática do período, a ditadura civil-militar instalada no Brasil na sequência do golpe de estado de 1º de abril de 1964, que se estendeu pelos vinte e um anos seguintes, foi marcada, desde o início, pela violência e pelo desrespeito sistemático aos direitos humanos e às prerrogativas da cidadania.
Os historiadores identificam no regime então implantado a primeira das “ditaduras de segurança nacional” instauradas, ao longo das décadas de 1960 e 1970, no cone sul da América do Sul, as quais se diferenciaram em muito dos governos ditatoriais unipessoais, de longa duração, das repúblicas bananeiras do Caribe e da América Central. Esta nova modalidade de ditadura seguia os ditames da “doutrina de segurança nacional” – ideologia criada pela direita militar francesa, ao depois aperfeiçoada e difundida pelos Estados Unidos – cujo conceito essencial é o de “inimigo interno”.
Trata-se este de sujeito abstratamente criado, em torno do qual se constrói o antagonismo discursivo articulado pelos novos governantes, e segundo o qual o adversário a combater – o “subversivo”, ou “terrorista” – não é identificável, pois está diluído, disperso em meio à população, onde atua disfarçado em prol do “movimento comunista internacional”. Daí que, para combatê-lo, as garantias constitucionais e legais podem e devem ser suspensas, em nome dos superiores “objetivos nacionais permanentes”.
Não por outra razão, aliás, desde os primeiros dias após o golpe, os novos governantes trataram de criar uma ordem jurídica sobreposta à própria Constituição, com a edição de “atos institucionais” e “atos complementares” – mediante os quais cassaram adversários políticos, professores, estudantes, líderes sindicais e servidores públicos, civis e militares; além de governar o País por meio de suas diretrizes autoritárias, impostas em todos os domínios da vida social, desde a administração pública até as atividades econômicas e culturais.
Além do mais, o regime ditatorial brasileiro distinguiu-se das demais ditaduras de segurança nacional que se sucederam então nos países vizinhos, todas nela inspiradas, por uma interessante característica: em vez de adotar explicitamente uma política de extermínio dos oponentes, como ocorreu ali, os ditadores daqui trataram de prendê-los e julgá-los – sem prejuízo, é claro, de inúmeras execuções criminosas promovidas por seus agentes. E para tanto, editaram legislação específica – a “Lei de Segurança Nacional” – e instituíram justiça também especial, na verdade, adaptando para isso a justiça militar federal, que já existia.
Da mesma forma, a ditadura brasileira manteve algumas instituições típicas da democracia liberal, fazendo-o, no entanto, de maneira limitada e controlada, como verdadeiros simulacros: assim ocorreu com a vida parlamentar, por intermédio da criação de dois partidos, um para apoiá-la, outro para exercer oposição limitada; as eleições, indiretas e apenas legislativas nos Estados e Municípios importantes; a imprensa, submetida à censura prévia; os sindicatos, sob intervenção militar; as universidades, também vigiadas oficialmente por membros das Forças Armadas, o que de resto ocorreu em todo o serviço público.
Com isso, ao tempo em que, internamente, os governantes se utilizavam destes convenientes mecanismos de descompressão, sob controles rigorosos, também podiam enfrentar, no plano externo, as críticas feitas ao regime, sobretudo nos países europeus, que hospedaram naqueles anos milhares de exilados oriundos do Brasil.
Conclusão: os perversos legados da ditadura de 1964
Em consequência, mesmo depois da redemocratização do País, várias instituições sociais persistiram impregnadas das rotinas e práticas viciadas adquiridas durante o período excepcional – podendo-se apontar como exemplos a militarização das polícias estaduais, tornadas “forças auxiliares do exército”, ainda formadas sob a famigerada doutrina da segurança nacional; a institucionalização da tortura, nas polícias e sistemas prisionais; a oligopolização dos meios de comunicação de massa; e o aviltamento da vida parlamentar.
Mais ainda que estes perversos efeitos, revela-se especialmente deletéria a herança ideológica autoritária deixada até hoje em segmentos, não apenas das camadas dominantes, mas também de seus aliados nos extratos médios e até populares. Esta é, sem dúvidas, uma das principais causas das sérias ameaças vividas por nossa frágil democracia, do que são veementes exemplos a intentona frustrada de 8 de janeiro do ano passado, e as manobras golpistas encetadas em 2022 – as quais acabam de ser reveladas graças às investigações em boa hora determinadas pelo Supremo Tribunal Federal.
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