Composição social multiétnica do serviço público: valorizar a igualdade racial é preciso
Fonte: Canva
Por mais que se fale sobre a importância da diversidade em todos os campos da vida e se busque combater o racismo e as discriminações de toda ordem, é visível que ainda há muito a evoluir nesse aspecto. No sentido de contribuir com o debate do tema, a Astec colheu opiniões de servidores públicos do município sobre cujo trabalho em diferentes áreas a questão racial tem impacto direto.
Enfrentando o racismo em Porto Alegre
Hamilton Fernando Pessoa Farias
Professor do Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores (CMET) Paulo Freire
A colonização provocou o início do massacre dos nossos povos originários e introduziu a escravidão africana após o início do genocídio indígena. A escravização, normalizada pelo comércio e pela Igreja, foi imposta pelos poderes do reino e apoiada pela intolerância religiosa e pela ganância, negando a humanidade dos escravizados. Ainda hoje, os escravizadores exploram e comercializam a desgraça dos capturados, tanto no Brasil, quanto na África.
A imigração europeia foi um processo inicial de eugenia no Brasil. Aterrorizados pelo Haiti, os racistas temiam a justa revolta dos escravizados. Ideologia seguida por senadores gaúchos, que levou ao Massacre dos Lanceiros Negros, em Porongos, no Rio Grande do Sul, e atualmente, como continuidade dessa violência, ao encarceramento e à morte de jovens negros.
Em 1956, Brizola prefeito, alertou para a existência de 30.000 crianças pobres sem escola, na capital, criou a Secretaria Municipal da Educação (SMED), construiu escolas municipais nas periferias com menor infraestrutura. Mas, a pedagogia não basta para enfrentar o racismo. Estima-se que 40% dos porto-alegrenses se assumam negros. Nas periferias, sem acesso a direitos, submetidos a preconceitos. O latifúndio concentra riquezas e poder, negando humanidade e direitos à negritude. Desempregados, rotulados na lei como ‘vadios’, continuam a ser o foco da repressão pública, taxados como ‘vagabundos’, superlotando prisões e sendo alvos preferenciais nas abordagens policiais.
O Movimento Negro indicou para o Conselho Nacional de Educação (CNE), com mandato de 2002 a 2006, a professora Petronilha B. G. Silva, gerando mudanças nas políticas públicas antirracistas. A qualificação e empenho de profissionais dedicados e a busca ativa dos educandos reforçam a importância da valorização da participação da comunidade escolar. A Educação para as Relações Étnico Raciais (ERER) e os Espaços Educativos Afro-Brasileiros e Indígenas (EEABI) lembram os Lanceiros Negros, traídos por seus chefes, no Rio Grande do Sul, e massacrados pelo Exército de Caxias, lutando por direitos. Viva o povo brasileiro!
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Racismo no serviço público: (re)conhecer para eliminar
Rita Becco
Relações Públicas, Especialista em Gestão Pública Municipal, na Prefeitura de Porto Alegre; atua como Técnica em Comunicação Social na Secretaria de Administração e Patrimônio (SMAP) – Associada da Astec.
O racismo, longe de ser uma manifestação individual e isolada, é um fenômeno diretamente ligado à formação social e cultural do Brasil. Por muito tempo, vigorou em nossa sociedade o mito da democracia racial que atribui à miscigenação e ao temperamento cordato do brasileiro o suposto fato de vivermos em um país sem racismo. Essa ideologia aliada ao conceito de meritocracia, que desconsidera os diferentes marcadores sociais nas disputas em processos de acesso à educação e ao trabalho, naturalizou a consolidação de uma sociedade profundamente classista, que há gerações tem reservado às pessoas não brancas lugares de subalternidade.
Embora o Art. 5° da Constituição Federal de 1988 preconize que todos são iguais perante a lei, na prática evidencia-se uma negligência estatal histórica à garantia do direito à igualdade da população negra. Somente a partir deste reconhecimento, a sociedade brasileira poderá aprimorar dispositivos de enfrentamento ao racismo estrutural. Nesse sentido, são vários os desafios na busca por equidade nas relações étnico-raciais, contudo cabe destacar importantes iniciativas no âmbito do serviço público, assim como os entraves observados nos respectivos processos de implementação de ações afirmativas.
As cotas raciais no serviço público
É importante reiterar que as cotas raciais se apresentam como ação afirmativa de suma importância para a promoção à igualdade racial nas condições de acesso ao serviço público. A Prefeitura de Porto Alegre é pioneira na formulação de ações afirmativas no campo da seleção de pessoal, com a criação da Reserva de Vagas para Afro-brasileiros (LC nº 494/2003, revogada pela Lei nº 746/2014). Contudo, ainda não disponibiliza de forma ativa um conjunto de informações sobre os cotistas (séries históricas, distribuição por cargos, por exemplo), tampouco dados sobre a evolução de suas carreiras.
Na esfera federal, desde 2014, há ingresso por cota para pessoas negras (Lei nº 12.290/2014 destina 20% das vagas). Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), esta medida elevou o percentual de negros entre servidores públicos federais ativos em 2020 para 37,2%. Em 2024, está prevista uma revisão desta lei. Os Ministérios da Justiça, da Igualdade Racial e da Gestão e Inovação anunciaram que encaminharão proposta ao Congresso Nacional ampliando para 30% o percentual para pessoas negras no Poder Executivo.
Ações como esta indicam o compromisso do setor público em ampliar o direito à igualdade da população negra brasileira, sobretudo, através da elaboração e implantação de políticas afirmativas. Ainda assim, cabe destacar que de acordo com estudos recentes, as cotas não eliminaram problemas como disparidades ligadas ao cargo e à remuneração, como verificado no exemplo a seguir: entre os juízes titulares, os negros são apenas 13,1%, as negras 11,2% índices bem abaixo da representatividade desses dois grupos étnicos na composição social do país.
A despeito das avaliações positivas, as cotas raciais são alvo de pressão por parte de grupos sociais que, alegando o descumprimento ao princípio do tratamento isonômico, evocando a conquista pela meritocracia e até mesmo reproduzindo um discurso classista de diminuição do nível de qualidade no perfil dos ingressantes, clamam pelo fim desta ação afirmativa. Um posicionamento que denota falta de conhecimento sobre os processos de reparação histórica ou uma atitude intencional de desconsiderar o abismo de oportunidades entre pretos e pobres e os filhos das classes mais abastadas.
Diante deste cenário, são urgentes o processo de letramento racial da população brasileira, visando à conscientização de todos na construção de uma sociedade livre do racismo, e a consolidação de informações sobre a carreira dos cotistas no serviço público – fator apontado por especialistas como um obstáculo para a ascensão profissional de pessoas negras. A promoção de igualdade racial demanda dados confiáveis capazes de dar suporte à proposição de ações afirmativas sólidas que, em sintonia com políticas de RH, levem a resultados perenes voltados ao ingresso e à formação de lideranças negras, levando à ampliação da representatividade deste segmento em postos de decisão.
A chave para esta mudança de cultura institucional pode estar no chamado feito pela filósofa Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.” Esse é o convite que fica a todos os servidores da Prefeitura de Porto Alegre!
PoAncestral: discutindo a história e a educação antirracista no I Seminário Estadual de História e Educação do CPHIS.
Estela Benevenuto
Doutoranda em História PPGH/UFRGS – Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, na EMEF Vereador Martim Aranha; coordenadora do Coletivo Falas Negras; educadora antirracista; integrante do Coletivo PoAncestral e Coletivo das Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.
O Coletivo dos Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre organizou, em junho de 2023, o primeiro ciclo de debates, em formato de seminário para comemorar os 20 anos da Lei nº 10.689/03¹. O objetivo do seminário foi discutir com a comunidade escolar, docentes e discentes, o impacto da legislação antirracista na educação brasileira durante as duas últimas décadas.
O Coletivo PoAncestral (PoA) atuou para a realização desse evento com a proposta de pensar a história da cidade de Porto Alegre em uma perspectiva crítica, inclusiva e transformadora, quebrando os paradigmas que apresentam a história do Estado e sua capital a partir de uma ótica eurocêntrica e branca, que exclui sujeitos diferentes da formação histórica dessa região do Brasil².
O Coletivo PoA e o Coletivo das Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre são exercícios independentes de historiadores e historiadoras, docentes da educação básica da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre de POA, juntamente com docentes da UFRGS. Nesse cenário, são debatidas questões relacionadas à história, memória, ancestralidade e presença das populações negra e indígena na formação da capital, bem como estes temas são discutidos e apresentados pelas mantenedoras Seduc/RS e SMED/POA para a construção curricular das diferentes áreas do conhecimento nas escolas públicas.
O seminário, que ocorreu entre os dias 01 e 03 de junho de 2023, nos campi da UFRGS e da FAPA/Unirriter, contou com diferentes temas relacionados às Leis nº 10.639 e nº 11.645/2008.
Conferência de abertura: “O ensino de história e a educação antirracista entre a Lei nº 10.639/03 e a BNCC”, com as presenças, da esquerda para a direita, da Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves (UFSC); Prof. Me. Maurício Saraiva (Unirriter/Fapa) e Prof. Dr. Rivair Macedo (UFRGS/PPGH)
O exercício pedagógico de um seminário sobre a Educação para Relações Étnico-Raciais (ERER), como esse, demonstra a capacidade que os coletivos têm de se organizar e conduzir debates importantes para a educação no Brasil. A educação antirracista deve ser uma prioridade nos currículos escolares, nas instituições públicas e nos espaços privados. Ao falarmos em uma sociedade democrática, com igualdade e equidade, respeitando a diversidade racial e de gênero, o protagonismo deve estar com todes que acreditam e trabalham por uma sociedade realmente inclusiva, e as iniciativas que proporcionam estas experiências devem ser publicizadas e compartilhadas para que se multipliquem essas ações.
¹ A Lei nº 10.639/2003, sancionada durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, versa sobre a regulamentação do ensino obrigatório da cultura da África e dos Afrodescendentes no Brasil para o ensino regular básico. Ver https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htmhttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
O papel da Comissão de Acompanhamento do Ingresso de Afro-brasileiros (Caia) na implementação das cotas étnico-raciais no município de Porto Alegre
Gustavo Lopes Silva
Procurador Municipal membro da Comissão de Acompanhamento do Ingresso de Afro-brasileiros (Caia)
A luta do movimento negro em Porto Alegre possui, como um importante marco, a Lei Complementar nº 494, de 10 de setembro de 2003, que estabeleceu a reserva de vagas para afro-brasileiros nos concursos públicos promovidos pelo Poder Público Municipal.
A instituição simultânea da Comissão de Acompanhamento do Ingresso de Afro-brasileiros (Caia) foi a pedra de toque de política de ação afirmativa, até então, incipiente no País, pois composta de representantes da administração municipal e da sociedade civil, incumbidos de avaliar os critérios para acesso via esse sistema. A representação social conta, desde então, com entidades comprometidas com a causa e em regular funcionamento, selecionadas por chamamento público, a cada biênio, conferindo legitimidade à deliberação colegiada.
A consolidação gradativa do sistema permitiu o aumento do percentual de vagas reservadas para 20% (vinte por cento), com base na Lei Complementar nº 746/2014. Atualmente, podem concorrer as pessoas negras autodeclaradas pretas ou pardas, cujos traços fenotípicos forem reconhecidos pela Caia, cumprindo o escopo da heteroidentificação, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
Até o ano de 2022, mais de mil e seiscentos servidores avaliados pelas cotas étnico-raciais foram deferidos pela Caia. Alguns processos seletivos para contratações temporárias e de residentes jurídicos, ademais, já reservaram vagas para candidatos negros, superando a limitação aos cargos de provimento efetivo. O pioneirismo da capital gaúcha se destaca, ainda, por ser um dos poucos municípios na implementação de ação afirmativa dessa espécie, dada a autonomia federativa.
Como qualquer política pública, por certo, há espaço para aperfeiçoamento. Merece ser louvado, contudo, o retrato da sociedade que se busca imprimir nos quadros municipais, de que a Caia possui papel de relevo, ao atuar na etapa de ingresso, como órgão legitimado ao controle da política de ação afirmativa, evitando a ocorrência de fraudes.
Caminhos para uma prática bibliotecária antirracista
Jacqueline O. Mative
Bibliotecária da Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães (CLH/SMCEC/PMPA) – Membro do Conselho Municipal Povo Negro (CNegro-POA) e Coletivo Nacional Bibliotecária(o)s Negros (CNBN)
A biblioteca pública é o centro do saber local, ela deve atuar para atender as necessidades dos sujeitos informacionais. Seu acervo precisa ser constituído por livros e outros materiais que consigam diminuir a desigualdade racial e social presente na nossa sociedade.
Construir uma sociedade antirracista requer atuar permanentemente em rede, principalmente nos espaços escolares, acadêmicos e culturais, com reformulações dos paradigmas eurocêntricos, pois todos os indivíduos e grupos sociais devem ser respeitados. Dessa maneira, poderemos desconstruir esse modelo colonizador, opressor e desumano que ainda existe em muitos locais.
A descolonização nas bibliotecas depende de: políticas públicas, movimentos sociais, professores, bibliotecários, estudantes, comunidade escolar e de cada um dos membros da sociedade. É uma prática diária de desenvolvimento de produtos e serviços que sejam universais e inclusivos.
Minhas práticas antirracistas buscam o meu fortalecimento como pessoa bibliotecária negra; participo de formações, encontros, cursos, e procuro disseminar e discutir esse conhecimento com meus pares, na Biblioteconomia e na sociedade.
Na Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães (BPMJG/CLH/SMCEC), planejamos as atividades com uma abordagem de visão decolonial, inclusiva e com muito espaço de discussão com a sociedade. Isso inclui seleção e avaliação de material bibliográfico, escolha de palestrantes, postagens em redes sociais, indexação de assuntos, participação no Conselho Municipal do Povo Negro.
Considerando que estamos atuando em uma biblioteca pública, que está instalada em um local que faz parte da memória negra da história da cidade de Porto Alegre, a Ilhota, nosso compromisso com essas práticas antirracistas e de preservação e resgate dessa memória e história negra se faz ainda mais necessário.
Saúde da população negra em Porto Alegre, acessibilidade aos serviços e a busca diária pela desconstrução do racismo
Veridiana Farias Machado
Bióloga, Educadora Social, graduanda em Psicologia/Unisinos/POA; trabalha na Área Técnica de Saúde da Pop Rua/NEQ/DAPS/SMS.
É fato que o racismo dificulta o acesso aos serviços de saúde, por ser estruturante das relações, é também institucional. Só quem sofre as consequências do racismo, sabe como ele implica em agravos de saúde mental, por exemplo. Pessoas vivendo de forma muito precária são, na maioria, pretas e pardas no Brasil.
Na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, existe um Núcleo de Equidades (NEQ), ligado à Coordenação de Políticas Públicas em Saúde (CPPS) e ao Departamento de Atenção Primária em Saúde (DAPS), que reúne as áreas técnicas de saúde das populações específicas: negra, quilombola, em situação de rua, imigrante, refugiada e apátrida, LGBTQIAP+ e indígena. O NEQ trabalha junto, por atender públicos com interseccionalidades, que ligam todas as áreas. Assim, os representantes do NEQ escreveram a Política Municipal de Equidades, que se encontra para ser sancionada. A existência do NEQ é fundamental, para que não haja silenciamento ao racismo, aos preconceitos de todas as ordens. O núcleo oferta: cursos anuais para trabalhadores (as) dos serviços de saúde, forma promotores da saúde das populações negra e LGBTQIAP +. A Área Técnica de Saúde da população imigrante, refugiada e apátrida, tem o projeto “Mediadores Interculturais”, que consiste na contratação de haitianos, senegaleses e venezuelanos, para acompanhar pessoas dessas etnias, nos diversos atendimentos de saúde. Há ofertas de oficinas de saúde, trabalho e geração de renda para pessoas em situação de rua. Essas oficinas buscam potencializar capacidades, habilidades e laços sociais.
A política de Equidades no SUS busca por justiça, garantia e ampliação de direitos, para as camadas da população que mais precisam. Contudo, faz-se necessário que outras políticas sejam garantidas para o público mais vulnerável. Só assim, poderemos diminuir agravos em saúde. A melhora na qualidade de vida da população preta e parda, em todos os aspectos, é o que pode melhorar indicadores. Fortalecer o SUS é condição determinante para salvar vidas, principalmente, um SUS menos racista. Não silenciar diante do racismo!
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