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O Centrão Tributário

Fonte: Canva

Cláudio Hiran Alves Duarte 

Cláudio Hiran Alves Duarte 
Procurador Municipal, associado à Astec e à Associação dos Procuradores pela Democracia

Imagine se você fosse um servidor público encarregado de tratar de tributos municipais (IPTU/TCL, ITBI, ISS) e, com raras exceções, só tratasse da incidência de ITBI. Ficaria curioso e, certamente, iria querer saber se os bancos pararam de prestar serviços ou se eles não seriam capazes de sonegar ISS; iria se perguntar se o IPTU Ecológico não estaria beneficiando devastadores ambientais ou se a planta de valores não estaria privilegiando os imóveis mais caros. Uma série de questionamentos surgiriam sobre a regressividade do sistema tributário, ainda mais quando se está em processo de reforma tributária.

Uma inquietação só, principalmente, para quem sofre da coceira ética, aquela que fica cutucando: você estudou em escola pública, há pessoas que te cuidaram, vive em sociedade e quanto mais degradado for o ambiente em que vive, mais degradada será a sua existência... Então, veja qual é a sua contribuição para diminuir a regressividade. A pessoa sente a inquietação, por mais que tente ser indiferente e acreditar na neutralidade técnica, ela persiste e vai desmoralizando as justificativas para a omissão.

Não é nenhum favor conhecer a regressividade do sistema tributário, ela vem de muito longe, sua ideologia já se encontra lá no Leviatã de Hobbes, que defende a tributação sobre o consumo para livrar os ricos da tributação sobre os seus bens¹. De lá para cá, aprimorou-se de maneira vertiginosa a ponto de um motorista de aplicativo pagar IPVA incidente sobre o seu carro de trabalho e o proprietário de um iate de luxo ser isento ou de os dez maiores bancos privados terem tido a carga tributária reduzida em 50% no período de 1994 a 2001, apesar de o aumento de seus lucros ter sido de 180% no mesmo período. Vários outros exemplos poderiam ser dados, principalmente em relação aos bancos.

Mas a maior parte da legislação sobre a carga tributária é de competência da União Federal dirá o centrão tributário, grupo de servidores públicos omissos que se deixa punir com a Kakí Omorfiá², a “Beleza má” ou num sentido mais livre e próximo, a Função Gratificada que os encanta e os faz ser coniventes com a regressividade do sistema.

De fato, a maior parte da legislação é federal, mas o ISS devido pelos bancos, por exemplo, tem uma parcela normativa de competência municipal relativa à definição da alíquota do tributo, que pode ser definida dentro da margem de 2% (a menor) e 5% (a maior) permitida pela legislação federal. 

Pois não é que o governo Mello decidiu aumentar a regressividade enviando à Câmara um projeto de lei para reduzir a alíquota de ISS para as operadoras de cartões de crédito de 5% para 3% em 2024 e para 2,5% a partir de 2026. Um presente para quem cobra os juros mais abusivos, acima de 400% ao ano no rotativo e, ainda, justifica essa cobrança justamente com base em um processo regressivo de transferência de renda: dizem as operadoras que os juros abusivos são uma necessidade para bancarem a não cobrança de juros nas compras com pagamento em trinta dias no cartão de crédito (quem tem dinheiro não precisa se utilizar do crédito rotativo e quem precisa dele paga juros abusivos para sustentar o consumo de quem não precisa). A fina-flor da regressividade receberá um presente do governo Melo, caso aprovado o projeto. Melo quer transformar Porto Alegre em mais um paraíso fiscal das operadoras de crédito, como se a nossa cidade fosse Barueri, SP.

Péssimo exemplo de exercício da competência legislativa tributária, dado por um governo que já deve explicações sobre o exercício da competência administrativa, a que se traduz em fazer cumprir a lei em nível local e precisa ser exercida com obediência aos Princípios Constitucionais da Progressividade e da Capacidade Contributiva. 

Exemplo inadmissível para qualquer pessoa com algum compromisso social, exceto para o centrão tributário, que segue firme e feliz com a Kakí Omorfiá, sempre pronto para contribuir com o governo regressivo, seja ele qual for. Entra governo, sai governo, o centrão sempre está lá, pronto para servir.

¹ “Da igualdade da justiça faz parte também a igual cobrança de impostos, igualdade que não depende da igualdade dos bens, mas da igualdade da dívida que cada homem tem para com o Estado, para a sua defesa. [...] a igualdade dos impostos consiste mais na igualdade daquilo que é consumido do que nos bens das pessoas que o consomem.” (HOBBES, Thomas. Leviatã. Brasília: Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 1999, pp. 271-272).

² “No Mito de Prometeu a punição dos homens foi receber a primeira mulher chamada Pandora que trouxe consigo um jarro com todos os males que humanidade conhece, e quando o jarro foi aberto (devido à grande curiosidade de Pandora) todas as desgraças se espalharam pelo mundo. A partir desse dia convivemos com todas as mazelas que conhecemos. Na verdade, a punição dos Deuses não foi a mulher, não foi Pandora e sua curiosidade, os homens foram punidos com a Kakí Omorfiá, que em grego significa uma “Beleza má”. Ou seja, os Deuses deram aos homens algo tão irresistível, que mesmo sabendo que Pandora trazia consigo o mal, os homens não conseguiram mandá-la embora, e tiveram que aguentar as consequências dessa escolha.” (DA SILVA, André Luiz Picolli e RAMOS, Alessandra de Rezende in Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 6, n. 2, 2020).

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Artigos | Revista da Astec, v. 23, n. 51, janeiro 2024.

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