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RecuperaPOA: o Refis da iniquidade?

E-mail: claudio@sinal.org.brCláudio Hiran Alves Duarte 
Procurador do Município de Porto Alegre – Integrante da Comissão Jurídica da Astec –

 

A cada dois ou três anos sai um Refis e a cada dois ou três anos aumenta a concentração de renda

 

Graças à coragem do servidor público (concursado) Luís Ricardo de Miranda, a empresa Precisa Medicamentos não surrupiou R$ 500 milhões do R$ 1,6 bilhão empenhado pelo governo Bolsonaro para a compra da vacina Covaxin. A tramoia foi denunciada pelo servidor, veio a público e está sendo investigada por outros servidores públicos também concursados.


Se essa mesma empresa atuasse em Porto Alegre, ela poderia se beneficiar do programa RecuperaPOA? Sim, do jeito como está o projeto de Refis ela poderia parcelar seus débitos fiscais sem problema algum e ainda com generoso perdão de juros e eventuais multas, tudo dentro da mais requintada técnica de manejo fiscal que transfere para o lombo dos pobres o peso da carga tributária.


E, se ela atuasse desde 2017, poderia ter participado do Refis daquele ano, deixado de cumprir o parcelamento e, ainda assim, reparcelar a dívida (art. 5º, II, do projeto) em condições tão vantajosas que a fariam chegar ao final de 60 meses em torno de 20% menor do que era. Um presentão do eleito para o seu eleitor.


Antes do Refis de 2017, teve o de 2015. A cada dois ou três anos, sai um Refis e, a cada dois ou três anos, aumenta a concentração de renda e o número de miseráveis. Isso não é um paradoxo, é uma lógica de concentração de renda operada por pretensos técnicos que acreditam ser essa a função dos servidores públicos concursados.


Os Refis são um instrumento muito útil para concentrar renda. O mecanismo é simples: eles já se encontram dentro de um sistema muito regressivo, apontado mais para a base do que para o topo e que ainda permite repassar o custo (por isso se fala tanto em tributos indiretos); mesmo sendo regressivo, os maiores devedores são os que concentram mais riqueza e é evidente que se dando os mesmos descontos e prazos para todos, os que devem mais se beneficiam mais e assim se completa o círculo da regressividade – o sistema fica todo regressivo, desde a previsão legal (tributos indiretos) à sua execução (Refis).


Durante a pandemia da covid-19, a miséria e a concentração de renda aumentam, aprofunda-se a desigualdade social e a regressividade do sistema vira iniquidade.


O RecuperaPOA serve de exemplo, é um Refis apresentado com a justificativa de a crise econômica agravada pela pandemia impedir os devedores de pagarem seus tributos, como se a crise atingisse a todos da mesma maneira. Não atinge. O próprio projeto de Refis se desmente ao permitir que as dívidas com penhora em dinheiro (art. 14, caput) nas execuções fiscais ou com valores depositados em juízo (§3º) em outras ações possam ser objeto de parcelamento e desconto.


O desmentido é evidente: quem dispõe de “dinheiro vivo” para depositar em juízo ou para oferecer à penhora é claro que não faliu durante a pandemia. No caso dos bancos, por exemplo, o desmentido vira deboche porque eles, além de estarem lucrando muito, ainda podem depositar em juízo o dinheiro dos correntistas.


A própria justificativa para o Refis é desmentida. O que justifica um Refis é a dificuldade em efetivar um crédito tributário porque ele se tornou “podre”, de difícil recebimento. E o que torna um crédito “podre”? Basicamente, três coisas:

 

a) a falência ou a inadimplência do devedor ─ e nesse caso ele precisa ser ajudado, justifica-se o projeto;

 

b) a possibilidade de o crédito ser anulado porque foi constituído incorretamente (ineficiência administrativa); e

 

c) a dificuldade para encontrar o devedor ou bens que o garantam.


Sendo assim, o que justificaria incluir no Refis um crédito tributário que já está sendo cobrado em juízo e com penhora em dinheiro? Só a ineficiência da Administração Tributária, o medo de ele ser anulado em juízo.


Pois é, sem apontar a quem se dirige, sem se restringir aos pequenos e médios devedores, o RecuperaPOA só pode ser entendido como fruto do medo ou da iniquidade.

Artigos | Revista da Astec  v. 21 n. 48 outubro 2021.  

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