Os donos de Porto Alegre: privatizando lucros, socializando custos
Fonte: Freepik

Marcelo Kunrath Silva
Professor Titular do Departamento de Sociologia/UFRGS; Vice-Coordenador do Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia Transformações da Participação, do Associativismo e do Confronto Político (INCT Participa) - Autor convidado.
Flexibilização das normas urbanísticas para viabilizar novos megaprojetos imobiliários, restrição da participação e do controle social, avanço do projeto de privatização do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), abertura de consulta pública sobre uma proposta de parceria público privada (PPP) para transferir toda a gestão dos resíduos urbanos de Porto Alegre para uma empresa pelos próximos 35 anos, extinção da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). Essas ações e propostas do grupo político à frente do governo municipal, que marcaram o final de 2024 e o início de 2025, indicam a continuidade (e, talvez, o aprofundamento) de um arranjo político que é introduzido em Porto Alegre na gestão de Nelson Marchezan Júnior (2017-2020) e se mantém nas gestões de Sebastião Melo (2021-2024 e 2025-2028). Em outras palavras, é a continuidade (e, talvez, o aprofundamento) do domínio do que uma série de reportagens do Sul21 denominou de “os donos da cidade” e que um estudo realizado por mim em 2024 denominou de “os donos de Porto Alegre”.
O que significa afirmar que Porto Alegre tem “donos”? De um lado, obviamente, a afirmação de que a cidade tem “donos” é uma simplificação de uma realidade muito mais complexa. De outro lado, apesar de ser uma simplificação, é uma afirmação que apreende elementos importantes da realidade da cidade. E o principal elemento que é apreendido por essa afirmação é a existência de um domínio quase absoluto dos setores empresariais na definição das políticas públicas municipais que, de alguma forma, afetam seus interesses.
O fato de o empresariado influenciar significativamente a política e as políticas públicas não é nenhuma novidade. Na verdade, é o padrão esperado em uma sociedade capitalista. Especialmente no caso de uma sociedade profundamente desigual como a brasileira. No entanto, o caso de Porto Alegre mostra uma radicalização desse padrão, com a crescente exclusão de outros segmentos da sociedade dos processos decisórios sobre a atuação do governo municipal. E isso chama mais a atenção no caso de Porto Alegre, na medida em que é uma cidade que ficou mundialmente conhecida por suas inovações participativas, com destaque para o Orçamento Participativo. Esse processo de ampliação e diversificação dos setores e interesses que, mesmo de forma desigual, tinham possibilidade de influir nas decisões governamentais foi revertido. E, ao contrário, o que se observa é uma progressiva diminuição de quem e do que efetivamente conta como interesses relevantes na cidade.
As implicações desse domínio dos interesses empresariais na definição das políticas públicas do governo municipal se expressam exemplarmente no caso da PPP dos resíduos sólidos. Documentos técnicos recentes da Prefeitura, como o Plano Municipal de Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos de Porto Alegre (PMGIRS) de 2023 e o Plano de Ação Climática de Porto Alegre (PLAC) de 2024, apresentam diagnósticos negativos da gestão dos resíduos na cidade e apontam diversas ações voltadas à resolução dos problemas identificados. Em particular, os Planos destacam a importância da participação social, especialmente dos catadores de materiais recicláveis, na construção e implementação de tais ações. No entanto, quando se analisam os documentos da proposta de PPP dos resíduos sólidos, o que se observa é uma desconsideração daqueles documentos técnicos e suas proposições. Há, claramente, duas dinâmicas: de um lado, os Planos, elaborados com suporte do corpo técnico da prefeitura e de organizações especializadas no tema, parecem ser apenas documentos “para inglês ver”; de outro, as propostas construídas no diálogo com setores empresariais e que incorporam seus interesses econômicos, como a PPP, são aquelas efetivamente implementadas.
Assim, mantém-se uma realidade que as enchentes de 2024 explicitaram de forma dramática: os lucros são dos “donos de Porto Alegre”, mas os custos são e serão pagos por toda a população, no presente e no futuro.
REFERÊNCIAS
DONOS da cidade. Sul21: Sul 21: Porto Alegre, 2023.Disponível em: https://sul21.com.br/donos-da-cidade/ Acesso em: 17 mar. 2025.
PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos: PMGIRS-POA (2023-2033) Porto Alegre: PMPA, 2023. 216 p. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/sites/default/files/usu_doc/sites/dmlu/PMGIRS_POA_2023.pdf. Acesso em: 21 jan. 2025.
PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade. Plano de Ação Climática de Porto Alegre Produto 6 – Relatório Final 2024. Porto Alegre: The World Bank, Way Carbon, Iclei, Ecofinance Negocios, 2024. 213 p. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/sites/default/files/usu_doc/sites/smamus/PMPOA23A_P6_PLACPOA_V2.0.pdf. Acesso em: 21 jan. 2025.
SILVA, Marcelo Kunrath. Os donos de Porto Alegre [Entrevista concedida a Elstor Hanzen]. ExtraClasse, Porto Alegre, 15 out. 2024. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/644826-pesquisa-mostra-quem-sao-os-donos-de-porto-alegre-entrevista-com-marcelo-kunrath-silva. Acesso em: 17 mar. 2025.
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