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O que essa experiência pode nos ensinar?

Sairemos dessa pandemia como uma sociedade mais separada por fronteiras, muros e preconceitos, ou mais humanizada, mais consciente de que “estamos todos no mesmo barco”, de que somos uma “comunidade de destino”, como fala Edgar Morin?


Ilustração Milo Cardoso/Leão Fúcsia


José Mário Neves

CRP nº 07/04752 Psicólogo na Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pelo Conselho Federal de Psicologia, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela UFRGS.*



Já se tornou um chavão falar que toda crise é, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade – mas, apesar de chavão, essa é uma verdade, pois toda crise tensiona a realidade, expõe de forma mais ostensiva o que não está bem e nos desafia a superarmos as nossas limitações.


Neste pequeno artigo, buscaremos refletir sobre o complexo momento que estamos vivendo e indicar alguns aprendizados que essa vivência está propiciando. No plano coletivo, esses aprendizados podem significar importantes avanços para a sociedade, com ganhos especialmente para nós, servidores públicos da classe média, e no plano individual podem levar ao desenvolvimento de uma sensibilidade mais humanizada e solidária.


Em poucos meses nosso mundo mudou radicalmente!

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (Covid-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública e, em 11 de março de 2020, caracterizou a Covid-19 como uma pandemia. Foram confirmados no mundo, até 14 de setembro de 2020, mais de 28,9 milhões de casos de Covid-19 e mais de 922 mil mortes, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas-OMS), e a cada dia estes números são superados.

Esses dados são suficientes para demonstrar que essa pandemia é um “choque mundial”, um “acontecimento” ímpar, não apenas na história, mas também na vida de cada um de nós. Pela primeira vez temos toda a espécie humana conectada e sincronizada, vivenciando o mesmo desafio. Nem a 2ª Grande Guerra Mundial foi um acontecimento tão universal. Não existe nenhum lugar do planeta imune ao que está acontecendo – até mesmo as tribos isoladas da Amazônia estão sujeitas aos riscos da Covid.


Podemos definir este “acontecimento” como a maior crise enfrentada pela humanidade em muitas décadas. Nele confluem uma crise sanitária (pelo número de mortos e de pessoas infectadas), uma crise econômica (que já está presente e terá seus efeitos prolongados por anos) e uma crise que podemos chamar de antropológica, pois a pandemia expôs a vulnerabilidade da espécie humana (vários cientistas avaliam que estaremos cada vez mais expostos ao surgimento de novas pandemias).


No âmbito da experiência pessoal, a pandemia também se expressa de uma forma não menos dramática. Mesmo quem não padece dos efeitos imediatos decorrentes de problemas de saúde e das drásticas perdas afetivas e econômicas, sofre com o potencial risco ao qual todos estão expostos e com a radical desorganização do cotidiano provocado pelo confinamento, o que suscita medos, ansiedade e preocupações inusitadas.


No Brasil, a pandemia torna-se pandemônio!

No nosso país, a esse quadro aflitivo acrescentam-se as graves deficiências da nação brasileira, que aparecem em três âmbitos: na sociedade, no Estado e no governo. No plano governamental, a resposta brasileira foi considerada desastrosa: começando pelos discursos conflitantes entre as esferas federal, estadual e municipal; passando pela descoordenação e ineficiência na alocação dos recursos; e chegando até a falta de planejamento para a obtenção dos insumos (testes e outros), estruturação da resposta assistencial e aproveitamento do potencial da atenção primária (o enfrentamento à Covid está concentrado na estrutura hospitalar). Como exemplo maior, temos a sucessão de equívocos e políticas disparatadas do Governo Federal, que em plena crise sanitária trocou duas vezes de Ministro da Saúde e até hoje tem um ministro interino, que não é da área da saúde.


No âmbito do Estado, temos também uma situação muito grave, que decorre do fato de que o Estado brasileiro não foi estruturado para garantir direitos e prestar serviços de qualidade e sim para dar sustentação política a uma estrutura social profundamente injusta e desigual. Isso fica evidente quando vemos que grande parte dos recursos públicos são apropriados pelo sistema financeiro, em detrimento das políticas públicas. A Emenda Constitucional nº 95 (EC95), de 2016, que congelou os gastos da União com despesas primárias por 20 anos, para drenar mais recursos públicos para o sistema financeiro, aprofundou ainda mais o corte de verbas das políticas sociais.


Neste momento de pandemia, vemos como o subfinanciamento histórico do SUS, aprofundado pela Emenda Constitucional n° 95, tem implicado em grandes obstáculos para o atendimento das necessidades de saúde da sociedade brasileira. Em Porto Alegre, essa política de desmonte do SUS foi agravada pelo governo Marchezan, com a extinção do Instituto Municipal de Estratégia da Saúde da Família (Imesf) e a entrega de grande parte das Unidades de Saúde para a iniciativa privada, tornando ainda mais deficitária a resposta assistencial à crise do Covid.


No âmbito da sociedade brasileira, a pandemia evidenciou que a enorme desigualdade social é um dos grandes desafios para o enfrentamento à Covid. Cabe lembrar que o Brasil é hoje o país democrático que mais concentra renda no 1% do topo da pirâmide, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris (Folha de São Paulo, 19/08/2019). Assim, vemos que a crise do coronavírus exacerbou muitas das iniquidades existentes no País – conforme vários estudos,os maiores atingidos são os segmentos sociais mais vulneráveis: negros, pobres e populações de periferia (MADEIRO, 2020). Neste sentido, o economista Jeffrey Sachs, professor da Universidade de Columbia, em artigo recente observou que “Países com menor nível de desigualdade estão sendo mais bem-sucedidos no combate à pandemia” (Jornal VALOR, 07/07/2020).


O “admirável (velho) mundo novo”!

No entanto, a desigualdade não é um “privilégio” exclusivamente brasileiro. Na década de 80 tivemos o encerramento da “era da social democracia” e o início do período das políticas neoliberais e da precarização das relações de trabalho (Thatcher-Reagan) em todo o mundo. Essas políticas produziram uma grande aceleração dos níveis globais de desigualdade, como demonstrou o economista fran­cês Thomas Piketty, no seu importante livro O Capital no Sécu­lo XXI.

Cada vez fica mais evidente que temos, de um lado, o fortalecimento de uma aristocracia de super ricos, vivendo em um mundo de opulência e de hiperluxo e, de outro, o aumento da massa de remediados e de pobres, que não têm o mínimo para uma vida satisfatória (NEVES, 2019). A consequência desse acelerado processo de concentração da riqueza é a progressiva extinção da classe média e o retorno à estrutura de classes sociais do Século XIX: uma minoria extremamente rica e uma massa de miseráveis (a classe média é uma criação do Século XX).


No Brasil, vemos o processo de extinção da classe média expresso nas políticas de cortes de direitos sociais e de redução do Estado. Recentemente, tivemos a Reforma Trabalhista (2017) e a Reforma da Previdência (2019), que significaram dois brutais ataques aos direitos sociais conquistados em décadas de lutas no Século XX. No entanto, para o serviço público, o pior ainda está por vir. Estava agendada para este ano a Reforma Administrativa e uma política agressiva de privatizações pelo Governo Federal – que significam a maior investida planejada contra o serviço público e o patrimônio nacional desde a redemocratização do País. A Reforma Administrativa só saiu (temporariamente) da agenda política nacional por causa da crise do Covid.

Nos planos Estadual e Municipal, também vemos as políticas de privatização e de desmonte do serviço público serem implementadas com toda a força. Ataques às condições de trabalho e aos direitos históricos dos servidores, privatizações, desmontes de serviços, contratações precárias e privatizações. Na Prefeitura de Porto Alegre, para citar apenas alguns casos, podemos apontar o desmonte de várias áreas: como a SME, a SMAM, as áreas de planejamento e de gestão, a assistência social, a educação e o Imesf. Como parte dessa política de desmonte, tivemos a entrega para a gestão privada ou mesmo a privatização de serviços de saúde, de iluminação, de manutenção de parques, além das tentativas de privatização do DMAE e da Procempa.


Esse conjunto de políticas, que já avançaram enormemente no processo de redução dos direitos trabalhistas, desmantelamento dos serviços públicos e privatizações, têm como objetivo criar uma sociedade baseada no trabalho precário e sem direitos. As políticas de austeridade e de redução do Estado, associada à “uberização” das relações de trabalho, produzem a concentração da riqueza no sistema financeiro e nas grandes corporações, acabando com as possibilidades de sustentação da classe média.


Tamanha concentração da riqueza produz também uma enorme concentração do poder: o sistema financeiro e as grandes corporações dominam as esferas das decisões políticas através do controle da mídia, dos jogos políticos-partidários e de múltiplas estratégias de manipulação social. Além disso, o sentimento de frustração e injustiça produzido por uma estrutura social excessivamente desigual é um risco para a estabilidade e para a democracia, pois historicamente a classe média é a base para sustentação de uma sociedade próspera e democrática.


A crise da Covid como oportunidade para um mundo melhor!

Como dissemos anteriormente, a crise além de um desafio é uma oportunidade, pois expõe com mais nitidez os problemas presentes na nossa realidade. Nesse sentido, Martin Wolf, do Financial Times, de Londres, em artigo publicado no Jornal Valor (07/07/2020) questiona: A Covid-19 é um choque mundial. Mas será que é um choque transformador?


Ao nos colocarmos essa pergunta, imediatamente surge uma questão: será que a experiência do isolamento social imposta pela pandemia vai aumentar o individualismo e a segregação social ou vai fortalecer o sentimento de solidariedade e propiciar o desenvolvimento de novas formas de fraternidade e de cooperação? Sairemos dessa pandemia como uma sociedade mais separada por fronteiras, muros e preconceitos, ou mais unida, mais humanizada, mais consciente de que “estamos todos no mesmo barco”, de que somos uma “comunidade de destino”, como fala o filósofo Edgar Morin?


A possibilidade da crise do Covid-19 ser transformadora em um sentido positivo depende do que cada um de nós vai aprender com essa experiência e o que todos nós, como sociedade, vamos fazer a partir desse aprendizado.


Vimos que, no mundo inteiro, a crise sanitária fortaleceu a compreensão da importância do Estado para a garantia da saúde e do bem-estar da sociedade. E no Brasil, a pandemia explicitou a profunda desigualdade social, expôs as deficiências na gestão do Estado e a insuficiência de financiamento para as políticas públicas, em especial para o SUS.


A crise do Covid revelou também os profundos limites de alguns governos, especialmente o do nosso País e o dos EUA, que demonstraram um total despreparo e descompromisso com a saúde e com a vida da população.

Pela primeira vez, a sociedade brasileira unanimemente reconheceu a importância de uma política pública como o SUS e a necessidade de um programa de renda mínima. Por isso, a clara percepção da insustentabilidade de uma sociedade tão desigual quanto a nossa, associada ao reconhecimento da importância das políticas públicas para a proteção da sociedade, pode constituir um ponto de virada na nefasta trajetória de desconstrução dos direitos sociais, de desmonte do Estado e de extinção da classe média.


Assim, no plano coletivo, a consciência produzida pela experiência da pandemia pode favorecer o despertar de uma nova composição de forças sociais, que reúna a maioria da população brasileira na luta pela criação de uma sociedade mais justa e mais igualitária e de um efetivo Estado de bem-estar social para todos.


É importante ressaltar que não se trata aqui de uma ideia de mobilização social pela manutenção do que ainda resta da classe média no nosso País, como se fosse uma luta por privilégios, mas de buscar uma ampla união de forças para estender as condições de vida da classe média para toda a sociedade. O caminho trilhado pelos países que se desenvolveram – como vemos na Europa – foi a união de todos os que queriam uma sociedade mais igualitária na defesa dos interesses da nação: investindo na saúde, na educação, na valorização do trabalho e nos demais direitos sociais.


Em síntese: a nossa existência, enquanto servidores públicos e classe média, depende desse despertar. Depende de conseguirmos mostrar para a sociedade que o desmantelamento do serviço público, a precarização das relações de trabalho e a concentração da riqueza interessa apenas ao sistema financeiro e às grandes corporações, em detrimento do interesse da maioria do povo brasileiro.


No plano individual, essa experiência também pode suscitar importantes mudanças. Em uma entrevista recente ao Jornal Libération (29/03/2020), Edgar Morin observou que todos vivemos sob a influência de consumismo, “viciados em produtos de virtudes ilusórias”, e que “O confinamento poderia ser uma oportunidade de desintoxicação mental e física, que nos permitiria selecionar o importante e rejeitar o frívolo, o supérfluo, o ilusório. O importante é evidentemente o amor, a amizade, a solidariedade, a fraternidade, o desabrochar do Eu em um Nós. Nesse sentido, o confinamento poderia suscitar uma crise existencial salutar, em que nós refletiríamos sobre o sentido de nossas vidas”. Assim, a “crise existencial” da pandemia pode nos ensinar que é possível viver de outras maneiras, em busca de coisas que tenham mais sentido humanos do que a acumulação de riqueza e o consumismo.


Achamos importante concluir reforçando que este momento crítico nos traz uma carga de angústia e de sofrimento, mas que essa experiência também pode servir para a construção individual e coletiva de um novo humanismo, no sentido da poética definição de Edgar Morin, na entrevista citada a seguir:

“O humanismo, a meu ver, não é somente a consciência de solidariedade humana, é também o sentimento de estar no interior de uma desconhecida e incrível aventura. No seio dessa aventura desconhecida cada um faz parte de um grande ser constituído de sete bilhões de humanos, como uma célula faz parte de um corpo entre centenas de bilhões de células. Cada um participa desse ilimitado, desse inacabado, dessa realidade fortemente tecida de sonho, desse ser de dor, de alegria e de incerteza que está em nós assim como nós nele. Cada um dentre nós faz parte dessa inaudita aventura, no seio da própria espantosa aventura do universo”.

* Autor dos livros: A Face Oculta da Organização, editado pelas Editoras da UFRGS e Sulina; e Trabalho e Gestão na Perspectiva da Atividade: crítica, clínica e cartografia, pela Editora Sulina.



REFERÊNCIAS


BRASIL. Emenda Constitucional n° 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 15 dez. 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm .

Acesso em: 30 jul. 2020.


BRASIL. Organização Pan-Americana de Saúde. Folha informativa – Covid-19 (doença causada pelo novo coronavírus). OPAS-Brasil, 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875 . Acesso em: 30 jul. 2020


CANZIAN, Fernando; MENA, Fernanda; ALMEIDA, Lalo de (Ilus.). Super-ricos no Brasil lideram concentração de renda global. Folha de São Paulo: São Paulo, 19.ago. 2019. Disponível em: https://temas.folha.uol.com.br/desigualdade-global/brasil/super-ricos-no-brasil-lideram-concentracao-de-renda-global.shtml . Acesso em: 30 jul. 2020.


CARRO, Rodrigo. Gastos para recuperar economia podem comprometer futuro, diz Sachs. Econômico Valor: Rio de Janeiro, 07 jul. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/07/07/gastos-para-recuperar-economia-podem-comprometer-futuro-diz-sachs.ghtml . Acesso em: 30 jul. 2020.


MADEIRO, Carlos. Covid mata 55% dos negros e 38% dos brancos internados no país, diz estudo. UOL, 02 jun. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/covid-mata-54-dos-negros-e-37-dos-brancos-internados-no-pais-diz-estudo.htm . Acesso em: 30 jul. 2020.


MORIN, Edgar. Sentir mais do que nunca a comunidade de destino de toda a humanidade. [Entrevista cedida a] a Simon Blin. Campinas: Associação dos Geógrafos Brasileiros, Seção local, 2020. Nota: Publicada originalmente no Liberération em 29/03/2020. Trad. Luciano Duarte, Wagner Nabarro e Gustavo Teramatsu. Disponível em: http://agbcampinas.com.br/site/2020/entrevista-edgar-morin-sentir-mais-do-que-nunca-a-comunidade-de-destino-de-toda-a-humanidade . Acesso em: 30 jul. 2020.


NEVES, José Mario. Que sociedade resultará da extinção da classe média? Blog Psicanalistas pela democracia. S.l. : 5 nov. 2019. Disponível em: https://psicanalisedemocracia.com.br/2019/11/que-sociedade-resultara-da-extincao-da-classe-media-por-jose-mario-neves . Acesso em: 30 jul. 2020.


Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS-OMS). Folha informativa – Covid-19. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875 . Acesso em: 15 set. 2020.


PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.


WOLF, Martin. Classe média forte sustenta a democracia. Econômico Valor: Rio de janeiro, 7 jul. 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875 . Acesso em: 30 jul. 2020.



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